Eutanásia. Lá tem de ser.

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Copyright de Isabel Santiago Henriques

Sabem? Não me apetecia nada escrever sobre o tema eutanásia. Não é um dos meus pet issues e nunca foi daqueles temas que me fizesse por a cabeça no cepo, esbracejar, despejar baldes de sarcasmo em textos de umas meras quatro linhas. Do que me lembro, devo ter escrito duas ou três vezes sobre isto. Mas os meus lados políticos direitos estão a impressionar-me tão mal que lá terei de revisitar o tema.

A parte política esgota-se depressa: sendo eu liberal, considero e sempre considerei que qualquer doente terminal, em sofrimento, em consciência e sem capacidade de suicídio, deve poder pedir a assistência de outro – médico, familiar, amigo – que lhe termine a vida e o sofrimento, sem que haja uma disparatada e inaceitável acusação de homicídio à pessoa compassiva que aceda a fazê-lo. É um exercício de liberdade da pessoa que quer morrer, sem atropelar qualquer direito de terceiros. (Reparem que não suponho que ficar ofendido e amofinado porque as pessoas decidem viver e morrer contra os nossos valores seja direito merecedor de proteção jurídica.) E da parte de quem ajuda a apressar a morte também não há nenhum direito alheio que atropele (em boa verdade, acedeu a um pedido, agiu por compaixão), pelo que não se justifica sanção social ou penal. Já está.

A parte não política do assunto é o que me impressiona mais. É certo que à esquerda também dizem abundantes disparates sobre a suposta falta de dignidade de uma vida em sofrimento, como se a dignidade de uma pessoa estivesse dependente do conforto físico, almofadas, loved ones a trazerem flores e mais coisas nessa linha.

Mas olho para a direita furiosa contra a despenalização da eutanásia e pergunto-me se estas pessoas nunca tiveram daquelas bombas atómicas na vida que nos deixam a transpirar sofrimento por todos os poros. Porque só quem está desconhecedor do que é sofrer pode presumir impor a continuidade do sofrimento a outros.

Eu já tive, e parte de mim partiu-se. Verdade: não houve em nenhum momento desejos de fim de vida, nem perto disso. Mas tinha dois filhos pequenos, família (que também levou com estilhaços e também se partiu), sobretudo tinha décadas de vida pela frente. Sei lá como reagiria se estivesse com o tempo de vida contado sabendo que o sofrimento não diminuiria. Não havendo a perspetiva de futuro, a vontade de ultrapassar um presente doloroso e de sofrimento pode esvair-se. O sofrimento muda-nos. Ou nos torna amargos ou nos torna melhores, mais compassivos com o sofrimento dos outros, com vontade de nos dedicarmos às pessoas e causas importantes. Se soubermos que não teremos tempo de colher os frutos do sofrimento (se não tivermos o azar de amargarmos), serve para quê?

Lamento, mas ninguém tem de impor aos demais o estoicismo frio de aceitar e viver o sofrimento por convicções de inviolabilidade da vida que não partilha.

Folclores de, legalizada a eutanásia, se começarem a matar os mais velhos para não maçarem, ou a da eutanásia que serve para poupar dinheiro ao SNS, vêm de pessoas que talvez estejam a transpor para os outros a parvoíce própria. Pior ainda são os políticos sem problemas de atirar convicções sobre este assunto para debaixo do tapete, ou inventarem falta de legitimidade dos partidos (como se só se legislasse sobre o que vem nos programas eleitorais), alegarem inexistência de debate (mas, já se sabe, quando se quer manter o status quo o melhor é não deixar os debates terminarem), para usarem a eutanásia (ou, melhor, o sofrimento alheio) para guerras à esquerda, lutas internas do PSD e manutenção para próximas eleições de um assunto que excita uma base eleitoral muito conservadora. Está a ser uma má figura da direita conservadora.

Mas, do lado oposto – dos argumentos e do humanismo -, há testemunhos que não se devem perder, como este de Pedro Tadeu: Seria capaz de matar a Ana Catarina?)

 

 

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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