Meghan Markle prescindiu da carreira?

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A discussão à volta do simbolismo feminista – ou anti-feminista – do casamento de Meghan Markle com o Príncipe Harry foi de nos por a desconfiar se não há pessoas, dos dois lados das trincheiras, com um queijo suíço a substituir o cérebro.

Umas (porque na verdade os disparates vieram mais de mulheres, temos de reconhecer) diziam que escolher casar e ter filhos é uma tremenda derrota do feminismo, porque Meghan, a auto denominada feminista orgulhosa, havia escolhido uma família. Estupefactos? Pois fazem bem. De facto não se vislumbra onde uma mulher rica escolher livremente ir viver para outro país, casar e constituir família seja antagónico a qualquer valor feminista. Há inúmeras feministas que casam, têm relações estáveis e, claro, têm filhos. Mas do que tenho lido nos últimos tempos de algumas luminárias das redes sociais, as feministas são umas libertinas, promíscuas, incapazes de criarem filhos, odeiam a instituição do casamento e por aí adiante. Como se sabe, mostrar publicamente ignorância e falta de noção do ridículo é, e deve ser, tão livre e possível como uma mulher escolher casar com o homem por quem se apaixonou.

Do outro lado estavam as feministas zangadas com Meghan Markle. Umas diziam que a agora duquesa de Sussex não devia ser levada ao altar por nenhum homem, ai jesus o simbolismo de uma mulher ser dada por uma homem a outro como se fosse um objeto. (Juro que li vários textos com estes argumentos em publicações que tenho por recomendáveis.) É não perceber que nem tudo na vida tem de ser um statement ideológico furioso. Meghan também foi vestida de branco e com véu. Ora tendo em conta que já teve namorados, foi casada e divorciou-se e está a viver há vários meses com Harry, bem, julgo que podemos supor com segurança que não será virgem – que é o que a overdose de branco pretende simbolizar. Alguns gestos têm-se porque são inócuos e, se calhar, práticos. Ter um braço para equilibrar com saltos altos em cima de pedras antigas e irregulares sabe bem. Dividir as atenções e trocar duas frases simpáticas com quem nos dá o braço num momento de nervosismo como aquele sempre é, também descansa.

Não é grave, pelo que podemos não perder tempo com estes pormenores? Às tantas eu já esperava que viessem fazer polémica, dos dois lados, porque Harry – e muito bem – abriu a porta do Jaguar azul cabriolet para Meghan nele entrar com o seu soberbo Stella McCartney. Não, ter maneiras e ser educado não é nenhuma afronta ao feminismo.

Mas o meu argumento preferido – quer das feministas mais enxofradas quer das anti-feministas (sempre irritadas com qualquer menção de feminismo) – é o da carreira que Meghan Markle abandonou por amor do seu príncipe. E que umas torciam o nariz e outras aplaudiam.

Ora bem, é evidente que Meghan Markle não abandonou nenhuma carreira profissional. Vai continuar a trabalhar que se farta. Vai trabalhar em filantropia e como ativista de uma série de causas que lhe são caras, incluindo as que envolvem mulheres mais vulneráveis – continuando, de resto, o que já fazia. Vai trabalhar como relações públicas da monarquia britânica e do Reino Unido. De certa forma, o seu trabalho é também a perpetuação da coroa britânica. Mais ou menos como Jorge VI disse a um Matt Smith fazendo de Filipe Mountbatten, na série The Crown: o trabalho de Filipe seria a futura rainha Isabel II.

Como duquesa de Sussex, Meghan Markle pode mesmo ter um impacto e promover as suas causas de uma forma que como atriz de série de televisão não conseguiria. Megham Markle sem dúvida mudou de carreira, mas continua com uma bem interessante. Numa altura em que quase toda a gente muda de ocupação e carreira em alguma fase da vida, é muito redutor afirmar que alguém que vai ter uma ocupação diferente deixa de ter carreira profissional.

Chegou o tempo de todo o mundo reconhecer: ser princesa e ser feminista também não é antagónico.

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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