Coragem é ter filhos

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Fotografia de Johan Bävman

Os dias podem começar cedo, muito cedo ou podem não acabar e, logo, não começar. O mistério da paternidade é o seu silêncio, em tudo semelhante ao mistério e ao silêncio de Deus, que faz com que os homens se questionem, se julguem, se arrependam, se perdoem, se amem, se encham de forças. Dizem que a paternidade tira tempo para tudo, que não nos dá tempo para pensar, para ouvir esse silêncio – nem para ler, para dormir, para descansar. Talvez porque os dias sejam demasiado longos, talvez porque o caos acabou de se tornar a nova ordem. Quando se chega ao trabalho o dia pode já ir a meio. Pode ter havido um desconforto. Fome insuportável. Ou fome que afinal já não é fome, porque passou a ser cólica, que passou a ser frio, que passou a ser calor, que passou a ser uma fralda suja, que passou a ser a roupa e a parede e a porta e as mãos, tudo cheio do que só devia estar na fralda suja. Que depois passou a ser fome. Que depois passou a ser só uma crise de flatulência. Que depois passou a ser necessidade de atenção. Sorrisos que evitam o estrangulamento, o fascínio com uma mão que se move, com um braço que se dirige à boca só por pensar nisso. Depois vem um dia de trabalho. De gente chata, de telefones a tocar, de publicidade sempre a chegar, de clientes, de reuniões, de erros, de falhas, de sucessos, de pressa, de stress. E ao fim do dia, entre um desejo enorme de chegar a casa para descansar e saudades da mulher e do filho, um homem chega finalmente a casa para ouvir choro, gritos, para dar banho e ouvir mais choro, para dar biberão e ouvir o choro das cólicas que não deixam a criatura comer, para tentar adormecer, para tentar comer qualquer coisa nos intervalos, para tentar conversar nos intervalos dos intervalos dos intervalos. Para, por fim, adormecer, de rastos, um par de horas, dois ou três pares de horas quando a noite é óptima. E para começar tudo outra vez. Onde é que um gajo tem tempo para o silêncio? E, pedindo pouco, onde é que se tem tempo, neste quotidiano frenético que é o nosso, para cumprir os mais básicos dos deveres?

Só a ouvir este silêncio que antecede o apocalipse um homem se consegue colocar no lugar do outro – e não sempre no seu. As mulheres, por exemplo. As mulheres são despedidas porque estão grávidas. As mulheres são censuradas porque engravidaram pela segunda vez. As mulheres são obrigadas a optar entre a carreira e a família. As mulheres têm como nome do meio “é suposto”. É suposto que sejam elas a acordar à noite quando os bebés choram. É suposto que sejam elas a abdicar da carreira. É suposto que sejam elas a ir ao pediatra. É suposto que sejam elas a mudar fraldas. É suposto que sejam elas a organizar a casa, a preparar refeições, a dar papas, a lavar roupa, a estender roupa, a compôr o frigorífico. No fim dos dias, mais longos para elas que para nós, o silêncio delas é esse: pega tu nele, que eu já não posso mais hoje. E os homens pegam?

Os homens chegam ao trabalho, depois de uma não raras vezes suplicada licença de paternidade, alargada com recurso a dias de férias, e ouvem dizer, entre palmadas nas costas dos restantes machos, que agora é que vão dar valor ao escritório, que agora é que vão querer trabalhar até tarde e tal. É que lá em casa está tudo em cenário de guerra, a tua sala agora vai parecer Berlim em 1945, pá. Trabalha para comprares coisas, para encheres a criaturinha de porcarias de que ela abdicava perfeitamente se tivesse meia hora do teu tempo e da tua dedicação. Trabalha para seres o macho alfa. Não faças coisas de gaja. Coisa de gaja é ter filhos. Como se o nosso trabalho fosse sair para caçar, primitivo e brutal. E depois temos as limitações evidentes ao exercício dos nossos deveres de pais: vais ao pediatra porquê? Não tens uma mulher em casa? Tens de sair mais cedo para ir buscar a miúda à escola porquê? Não tens uma mulher que te trate dessas miudezas? Há um silêncio nalguma paternidade: é o silêncio dos homens que não são só adereços, que não são só aquele que também vive lá em casa, que paga as contas e trabalha muito. É o silêncio da minoria que não acha que a mãe é que sabe, a mãe é que faz. Quando se fala do inferno da paternidade, este é capaz de ser o lugar mais quente desse inferno: a desigualdade.

Há nalguns meios a percepção do homem moderno, do pai de família 2.0 que se dedica, que aplica o princípio da igualdade nas lides domésticas e nos cuidados ao bebé e à criança, que organiza o seu dia de trabalho para não faltar à chamada das papas, dos biberões, dos banhos e da educação, que isto eles agora já não são como antigamente, todos envolvidos e igualitários. Mas vamos aos factos: o primeiro Inquérito Nacional aos Usos do Tempo de Homens e de Mulheres, promovido pela Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, concluiu que as mulheres gastam por dia, em média, 4h17 em tarefas domésticas ou a cuidar de alguém da família como as crianças. O macho latino 2.0 gasta, em média, 2h37. E mais factos: 71% das mulheres acham esta divisão justa e 75% dos igualitários homens lusos pensam o mesmo, obviamente. Isto não seria grave no tempo em que as mulheres não trabalhavam fora de casa. Mas as coisas já não são assim. As mulheres – e bem – trabalham, têm vidas profissionais de alto nível, não são só mães e sopeiras a tempo inteiro. Mas o homem português continua a comportar-se como se nada tivesse mudado nas últimas décadas: compra cervejas no supermercado, mas não encontra a acetona; lava e aspira o carro, mas é incapaz de lavar a casa-de-banho; faz uns grelhados para os amigos em dia de bola, mas não consegue preparar os cozinhados para a semana; e os espíritos mais avançados levam o lixo à rua.

Parece evidente que a natalidade sobe por essa Europa fora em função da participação dos homens nas actividades domésticas e de cuidados com os filhos. Talvez a média de 1,2 filhos por cada portuguesa não seja mais que a cláusula nacional da sanidade feminina. É talvez isso que explica, em parte, a política do filho único. Não é só isto? Não. Também são os preços das creches, a falta de incentivos fiscais, os baixos salários, os horários rígidos, as horas de ponta, a falta que nos faz uma comunidade e uma família mais próximas. Também é muito isto. E esta política empresarial que se apaixonou pelo jovem urbano e cosmopolita, solteiro e bom rapaz, que não casa, que não tem filhos, que está disponível 24 horas por dia e 7 dias por semana – e que, absurdamente, acredita que é livre.

 

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32 anos, casado, pai de uma filha. Advogado e ex-assessor no XIX Governo. Colaborei, enquanto jurista, na redacção do livro “O Inimigo em Casa – Dar Voz aos Silêncios da Violência Doméstica” e escrevi o artigo “A Liberdade não está a passar por aqui” para o livro “Troika Ano II – Uma visão de 66 cidadãos”. Escrevo no Observador sobre o sistema político e a justiça.

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