SIN VINO NO HAY CAMINO!

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O que o caminho nos recorda a cada instante

PARTE V – Pernas com corpos, celas imaculadas e a conquista da Compostela

Texto de Mariana Beleza Tavares. Fotorreportagem de Marta Gonzaga.

[Parte I – Tudo começa por um primeiro passo, de preferência português!]

[Parte II – Sin tapas tampoco]

[Parte III – Pedras no caminho e o mí(s)tico Avatar]

[Parte IV – Singularidade das histórias do caminho e um brinde ao mexilhão]

De Vilanova de Arousa a Santiago de Compostela

A extasiante chegada a Santiago

Uma vez chegadas a Padrón, finaliza a Variante Espiritual – sendo que fizemos uma variação à variante, ao percorrê-la em quatro etapas, ao invés de três -, ao unir-se ao Caminho Português tradicional.  Restavam 25 quilómetros até Santiago de Compostela e a certeza, mesmo sendo a única etapa onde ultrapassávamos a marca dos 20, de que a percorreríamos serenas. E sem maleitas. Havíamo-nos transformado em autênticas pernas com corpos ao invés de corpos com pernas.

Cinco horas de passadas, paragens estratégicas para alongar (ou para uma taça e uma tapa, isto mais para o final), alguma tagarelice, emoções várias. Atravessámos um vale pincelado de aldeias tradicionais e santuários em granito a abrir o pano para a tão ansiada catedral dos peregrinos, em Compostela. Em meio, uma surpresa, mais para a peregrina alemã que encontrámos. Não é que esta caminhante vinha a fazer o Caminho Português tradicional há seis dias e era a primeira vez que avistava outros peregrinos?!? Esboçou um sorriso largo e confessou-nos: «a encontrar alguém, que fosse agora. Não me apetecia nada chegar a Santiago sozinha.» Compreendemo-la e compreendemos a nossa sorte, pelas pessoas formidáveis com que nos cruzámos.

Mais umas bastonadas e atingíamos o nosso destino. Ah! Ia-me esquecendo de um detalhe fundamental, a credencial do peregrino, que a Marta adquiriu na Sé de Lisboa uns dias antes da partida. Carimbada a cada paragem, era este «passaporte jacobino» que comprovaria os mais de 100 quilómetros percorridos a pé e oferecia direito à Compostela, o diploma outorgado pelas autoridades eclesiásticas que atesta a vivência desta peregrinação. Bem que podia ter perdido o cartão do cidadão em Pontevedra, a dita credencial é que não!

No caminho, quisemos reservar albergue, mas a argentina foi perentória: «Em Santiago, hospedamo-nos no Mosteiro de San Martín Pinario, na praça adjacente à da catedral. Não se vão arrepender. E acredito que haja quartos, confiemos». Confiámos. Os arrabaldes de Santiago assemelhavam-se a um qualquer subúrbio onde predomina o alcatrão, escasseia o espaço verde e erguem-se edifícios descaracterizados. De pouco nos importava esta fealdade, encontrávamo-nos em contagem decrescente para uma sensação ainda desconhecida: assemelhar-se-ia a entrada na praça à chegada ao Santuário de Fátima? Reviveria a mesma leveza, alívio, comoção, gratidão de que me recordo?

Eis que o arco-íris surge no horizonte para nos saudar e relembrar que estávamos na reta final para alcançar o pote de ouro tão ansiado. A paisagem começou a harmonizar-se quando entrámos no centro histórico. As pernas levitavam e todo o esforço transmutara para um estado de fluidez que era uma estreia, passadas tantas passadas. Silenciámo-nos e demos as mãos ao percorrer a Praza das Praterías, com a sua Fonte de Cavalos de pedra, a segredar-nos que, também, nós estávamos próximas de saciar a sede. Uma sede de luz, presença e paz interior que emana da contígua Praça da Catedral, aonde entrámos de lágrimas nos olhos e sorriso em riste.

A Marta e eu à chegada a Santiago de Compostela

Ao silêncio aconchegante seguiu-se um estrondo de alegria, com a nossa amiga, a atirar a mochila ao ar acompanhada de um grito inteiramente libertador: «Consegui». E havia conseguido tão mais do que caminhar longuíssima distância. A cada passada inicial, uma dor de amor, progressivamente mitigada até se haver transmutado, por via do movimento desgastante, em memória longínqua, aceitação e perdão, saudade serena. Abraçámo-la e sentámo-nos no chão a admirar as torres do imponente templo românico e a sentirmo-nos também a tocar o céu. O quarto elemento partiu à sua vida, tão depressa como se nos chegou à nossa, depois de uma troca de olhares agradecida.

As placas no chão no centro da praça dizem Itinerário Cultural Europeu e Património da Humanidade pela Unesco, e são ilustradas pela omnipresente vieira. É tradição juntar os pés em cima desta vieira e entoar uma pequena oração de gratidão. Na verdade, a chegada a Santiago foi mais impactante do que a Fátima, o que se afigurava difícil. Talvez o crescimento e maturidade desempenhem um papel preponderante na maior intensidade do sentimento: alegria, paz interior, tumulto sereno, conexão com o cosmos, compreensão absoluta da peça que somos neste complexo puzzle denominado Humanidade.

A praça não estava cheia, mas o nosso coração transbordava. Entrámos na catedral, a casa do túmulo de Santiago Apóstolo, onde escutámos a Santa Missa e recebemos a bênção do peregrino, num ritual pleno de significado. Havíamos nutrido o espírito, agora teríamos de saciar o estômago numa das pitorescas tascas do centro da capital galega. Não antes de pousar as mochilas e garantir a nossa estada no Mosteiro de San Martín Pinário. Saiu um pouco mais caro do que o albergue, mas valeu todos os euros pela experiência de usufruir do merecido repouso numa cela em pedra, de lençóis e atoalhados imaculados, confortável e adaptada à modernidade, sem deixar de nos transportar para a atmosfera monástica do século XVI. Ai se os monges soubessem o que é o wi-fi!

Esganadas nas pernas com corpos, sentámo-nos numa tasca bem castiça, onde brindámos ao sonho realizado – quer com vino, quer com cañas –  e deliciámo-nos com tapas bem aviadas – e gratuitas! – e iguarias variadas..

No dia seguinte, tomámos o pequeno-almoço e fomos receber a Compostela que tão firmemente conquistámos. Despedimo-nos da corajosa companheira desta etapa, com promessas de manter contacto e quiçá visitar a sua terra natal, e apanhámos o expresso para Valença. Com três certezas: o Caminho não acabava ali, pelo contrário, começava. Havíamos de regressar. E que, «sin vino no hay camino!»

1 COMENTÁRIO

  1. Gostei muito de ler esta série. Fazer o caminho de Santiago é um sonho meu mas não tenho a certeza de conseguir torná-lo realidade. Vivi-o aqui, por enquanto. Obrigada.

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