As mulheres enquanto mercadoria e o roubo do amor maternal como forma de nos escravizar – 2/4

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Vénus de Willendorf

Ou por que deixamos de ser deusas?

Tinha 16 anos, há 44 portanto, quando pela primeira vez me confrontei com a descrição de um parto. Assisti a uma conversa entre duas mulheres “já feitas”. Não lembro quem eram, apenas ressoa a voz de uma delas que, num tom apavorado, dizia para a outra que nunca teria filhos por não estar para se sujeitar a tal sofrimento. A sua descrição era típica de uma casa dos horrores; um verdadeiro momento apocalíptico. Atónita, tudo ouvi e, não fosse o meu sentido pragmático, naquele momento teria decidido no mesmo sentido. Lembro-me de ter pensado que a mulher era parva pois se todas ficassem assim acagaçadas já não haveria humanos. Nesse dia tomei a decisão de querer ter filhos porque se a minha mãe e avó e todas as outras mulheres o fizeram eu não era mais fraca do que elas. Devia-lhes isso. Sim, sem problemas digo que na minha cabeça, nesse ano de 1976 a palavra que me saltou foi essa “fraca”. Eu não o era. Assunto encerrado.

A vida decorreu. Formei-me, casei-me, pude ter filhos, divorciei-me e aqui estou, na terceira fase do símbolo de “triskle”(1) a partilhar as minhas reflexões sobre feminismo. Sou uma mulher de esquerda, sem vínculo partidário; será sempre nessa perspetiva que irei analisar a situação da mulher no mundo. Uma esquerda humanista que se distingue, grosso modo, da direita humanista nos modos de produção e de organização do estado.

Aproveito para agradecer à Maria João Marques o desafio para o fazer.

Se, como nos diz São Tomás de Aquino que reflete o pensamento de Aristóteles, enquanto ser vivo a raça humana é regida pelo direito natural a existir, como justificar então a nossa submissão aos homens?(2)

Para Aristóteles, tal subordinação resulta da condição de nascermos com virtudes inferiores às deles, pelo que em decorrência desse facto, natural, hoje diríamos genético, não temos capacidade para desempenhar funções de governação na polis, só nos restando, como solução imperativa, a nossa sujeição aos homens, seja na condição de marido, pai ou outra, tal como os escravos e as filhas ou os filhos (no caso dos machos, até estarem aptos).

De realçar que não era um qualquer defeito, como ser improdutiva, coxa ou cega. mas sim um que nos atribuía a incapacidade de ter acesso ao conhecimento que permitiria a participação na coisa pública. Sabemos que para Platão, Mestre de Aristóteles, no plano da utopia “a mulher deve ser igualmente parte ativa (…) e ocupar ao lado do homem guardião a função de guardiã dos bens da comunidade.” É-nos reconhecido, também, o direito de ter acesso à mesma educação que o guardião porém, remata, que a par dele não temos condições para ter acesso a essa educação para ser guardiã porque “cada um deve executar a sua tarefa específica, de acordo com a sua natureza, pois as mulheres procriam enquanto isso está vedado aos homens.”(3)

Já para São Tomás de Aquino temos um defeito ou falha natural que nos obriga a ter uma atitude passiva de submissão, sobretudo, ao marido. Este Santo e filósofo da Igreja pode não ter dito exatamente isso mas, para o que aqui me traz, o que importa é que não foi nesta paridade que a sua mensagem foi apropriada e transmitida ao cidadão comum frequentador da igreja.(4)

Ora, sabendo que já fomos deusas, não no sentido da idolatria, do mundo etéreo mas sim, mater, matriz, início, porque geramos vida e fornecemos o alimento necessário à sobrevivência concluo, usando a terminologia Aristotélica e de seus seguidores, que enquanto fêmeas tivemos sempre mais dois direitos naturais que nos distinguem dos machos: somos geradoras de uma nova vida que é, concomitante ao ninho que a permite, e de alimentarmos/cuidarmos a cria até esta estar apta a fazê-lo autonomamente. As diferenças, abismais, entre um bezerro acabado de nascer e um humano mostram como a nossa imaturidade neuronal e músculo-esquelética é notável. Não entrando numa linguagem técnica, todos sabemos que o bezerro passadas umas horas está a levantar-se, a caminhar e a procurar alimento na mãe, enquanto o humano leva meses para o fazer de um modo incipiente e anos para o conseguir sozinho. Até há bem pouco, tempo sem o alimento e cuidados da mulher/mãe morreria.(5)

Na minha primeira participação, nesta plataforma, abordei, a amamentação, como condição natural e exclusiva do género feminino, a qual sendo diferente em termos biológicos não o é, em termos emocionais, de outros mamíferos. O visionamento, doloroso, dos gritos de um bezerro “raptado” e da vaca que ainda o amamenta a correr atrás do filho, foi o gatilho para toda esta reflexão.(6) Neste segundo texto acrescento como um direito natural, especifico das mulheres, a produção de vida com a inerente “nidificação” e parto.(7)

Quando tentei perceber as causas desta nossa condição de escravidão a resposta, corrente, consistiu em atribuí-la ao patriarcado. Ao estudar este conceito, genealogia e cronologia, descobri que nas principais ciências socias (história, sociologia, antropologia, filosofia, teologia, psicologia) a sua génese coincide com o aparecimento da agricultura (10 000 a. c.) e consequente alteração na organização social. Concluí, que, se por um lado faz sentido essa matriz ela não resolve, contudo, a minha dúvida: se antes do aparecimento das novas formas de alimentação e organização as sociedades eram matriarcais, onde éramos deusas, o que ocorreu, no processo evolutivo,(8) com o género masculino para que o papel social das mulheres passasse a ser perspetivado e imposto sem paridade? Por que começaram a atribuir-nos um defeito de nascença?

É uma falha de tal modo grave que passamos a ser consideradas, pelos homens, na decorrência desse defeito de nascença como incapazes, impuras.(9) inúteis, pecadoras, uma aberração da natureza… ao ponto de podermos ser, até à atualidade, roubadas, vendidas, troféus de guerra e caça, humilhadas, batidas, violadas, assassinadas. O que leva os homens a esta atitude e, em demasiados casos, inclusivé, para com a mãe dos seus filhos? O que faz com que os homens não se sintam perturbados quando outros homens assim procedem?

Para este facto encontro como única resposta uma competição por não poderem, também eles, machos, serem geradores de vida e cuidadores.Esta competição traduz-se em ciúme, o qual se manifesta pelo desejo da posse das qualidades do outro. Ora, sendo materialmente impossível ter as qualidades do outro, perante o sofrimento plausível que causa, os homens encontrarão como única saída a sua destruição. Porém, nesta situação específica, eles têm consciência que ao destruírem o objeto do seu desejo, a vida deixará de ter viabilidade pelo que ocorrerá um processo de autofagia. Consciente desse desastre filogenético, os homens descobrirão na nossa submissão aos seus desejos, a primeira solução exequível. É, portanto, neste combate interno pelo controle da raiva, da impossibilidade de gerar uma vida, que se encontra a raiz da emoção mais assassina que se conhece para com as mulheres “se não és minha não serás de ninguém” e a mais humilhante “todas as mulheres são putas”. Putas porque temos uma liberdade que eles não têm que será um 4 em1: gerar/nidificar/alimentar/cuidar. Como não nos podem retirar essa liberdade retiram-nos a liberdade de participar na comunidade; como castigo prendem-nos à casa.(10)

Embora sentindo-se fisicamente mais fortes, os homens depressa perceberão que, por essa via perderão, pois dizerem-nos que somos defeituosas não resultará; eles sabem que nós sabemos do nosso poder: sem a nossa participação a raça humana extinguir-se-á.

Se por um lado os homens, como nossos filhos reconhecerão o nosso poder por outro e pelo mesmo motivo, pois antes de serem maridos ou pais ele são filhos, também conseguirão identificar as nossas fragilidades.

Para nos submeter farão uso, sub-repticiamente, ao longo de milhares de anos, de várias estratégias as quais irei, ao longo dos próximos tempos, apresentar, e desconstruir. Há uma, poderosa, que foi a primeira de todas, que consistirá em sugar-nos parte das nossas vísceras: as crias que parimos. Estas serão reduzidas à condição de “sem direitos”, de adultos em miniatura, de defeituosos, de um bem transacionável, de selvagens, de improdutivas… uma tática que permitirá todo o tipo de abusos: as crianças chorarão de dor, de medo e de ressentimento, pelo abandono de quem tinha o dever de proteção; a mãe soluçará com elas sem nada poder fazer. Nós mulheres/mães, fomos aferrolhadas no castelo das nossas entranhas.

Como M. Gorki sabiamente nos descreveu em “A mãe” eu, Maria José, mulher e mãe consigo sentir em mim Pelágia no seu sofrimento, miséria, exploração para lá das condições sociais e do trabalho. Pelágia, essa mulher/mãe coragem, que carrega um passado violento, de opressão mas também de futuro libertador para ambos.

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(1) Simbologia do símbolo celta triskle

(2) Quando me refiro a “homens” ou “mulheres” sei de antemão que há exceções, felizmente cada vez mais, apenas faço uso da figura de estilo sinédoque.

(3)  O papel das mulheres em A República de Platão (livro V): utopia no feminino ou tópicos para uma reflexão propedêutica sobre Direitos Humanos

(4) O que São Tomás de Aquino nunca disse sobre as

(5) O primeiro leite em pó conhecido.

(6) Na internet em sites de vegetarianos/veganos há centenas de vídeos onde se pode constatar o olhar de sofrimento de, por exemplo, vacas, ovelhas e cabras quando os funcionários lhes estão a tirar e a matar à sua frente os filhos que ainda amamentam. Em termos de comportamento animal para os animais de companhia também já sabemos das sequelas emocionais entre um gato ou cão que é desmamado pela mãe e aquele que é tirado precocemente pelo humano.

(7)As implicações emocionais deste momento serão exploradas num próximo texto;

(8) Hoje sabemos do capital masculino na fecundação sendo que a sua participação biológica termina ai. Quando refiro a não participação estou a falar de um estádio evolucional em que o desconhecimento sobre este processo era total. Se por um lado foi percebida, pelo pensamento grego, a participação do sémen no processo da fecundação por outro, desconhecia-se a existência do óvulo o qual só viu a luz do dia em 1827 por Karl Ernst von Baer. É importante, também, realçar que na fêmea humana o período de fertilidade não é percebido e não afeta o comportamento sexual o qual pode acontecer em qualquer fase do ciclo. Como biologicamente não somos pré-determinadas pela fase do cio implica sob este aspeto os humanos estão livres da sua determinação para acasalar. Uma vez que as relações macho-fêmea são tradicionalmente duradouras ou simplesmente longas já o comportamento de acasalamento pode ser tão casual como o dos chimpanzés.

(9) Lei-se em Levitico 12 “Se uma mulher conceber e der à luz um menino, será imunda sete dias (…) nenhuma coisa santa tocará e não entrará no santuário até que se cumpram os dias da sua purificação. (…) se der à luz uma menina será imunda duas semanas (…) ficará sessenta e seis dias no sangue da sua purificação.”

(10) Não será por acaso que uma das primeiras grandes lutas feministas não relacionada com sobrevivência/autonomia financeira foi precisamente o direito a votar.

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Psicóloga desativada com uma costela, no feitio, de Brites de Almeida em que tal como ela é mais a fama do que o proveito. Entre 1960, em Trás-os-Montes onde fui parida e o Porto onde fui feita segundo rezava o meu pai quando farto das minhas impertinências desabafava "por que não fui à pesca nesse dia?" e hoje, Coimbra, do meu mundo fazem parte 5 rios, o primeiro dos quais no alto alentejo raiano e 12 localidades por chão onde muitas vezes me descalcei para ser alimentada. Não sei quem escreveu mas um dia li e tomei como minha "se vos contasse tudo o que penso e vejo seria internada" Saltimbanca me sinto desenguiçando o emaranhado das ideias, qual marioneta, no caos do mundo em que me sento a atuar no pequeno palco comandada por forças que não controlo.

2 COMENTÁRIOS

  1. Querida amiga, Cristina, fiel depositária dos meus sonhos e das minhas inquietações muito obrigada por teres comparecido. Um grande beijo.
    🙂

  2. Parabéns, pelo artigo! Desnuda a hostilidade, o preconceito, a violência simbólica e real para com as mulheres. Sendo certo que nem todos os homens hostilizam explicitamente as mulheres, é certo que o “habitus” condiciona as suas crenças sobre as questões de equidade e igualdade. Fico a aguardar, com expectativa, pelos artigos seguintes. Forte abraço, Maria José Carrilho!

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