Covid: a responsabilidade é do governo, não das pessoas ‘irresponsáveis’

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Imagem aqui: ourworldindata.org/coronavirus

Tenho de fazer este desabafo. Anda a irritar-me de sobremaneira a conversa nas redes sociais ‘ai o governo não tem culpa pela situação da covid, as pessoas foram irresponsáveis, se não tiveram cuidado no Natal o que é que o primeiro-ministro e a ministra da saúde podem fazer para baixar os números?’

As pessoas são como são, e cabe a um governo decidir e governar para as pessoas que existem, com os comportamentos humanos esperáveis, em vez de para robots ou seres celestiais inexistentes. Se um governo não sabe governar para as pessoas como elas são, deve arrumar as botas. Qualquer pessoa pensante percebe – e, se não percebe, poderia ter pedido ajuda a historiadores (ainda há semanas aconselhei a leitura do livro London At War de Philip Ziegler sobre os estados de espírito e comportamentos dos londrinos durante a Segunda Guerra Mundial, dando conta como a bravura e resiliência face aos primeiros bombardeamentos da cidade de 1940 foi o oposto do desânimo durante os bombardeamentos de 1944 e 1945; e mesmo a displicência com que ao fim de alguns meses os londrinos deixaram de se proteger das bombas do blitz em 1940 também nos pode dar pistas para o comportamento em tempos de crise aguda), psicólogos, sociólogos, etc. na tomada de decisão – que a população NÃO aguenta meses sem fim de medidas que lhes constrangem severamente a vida em tudo aquilo que a vida vale a pena ser vivida (relações inter pessoais, tempos de lazer, alegria partilhada com outros, contacto humano e social). Não aguentam. Ponto.

E aguentam ainda menos quando as medidas que lhes constrangem a vida ou não têm resultados ou têm resultados medíocres que não compensam a diminuição de bem-estar provocada pelas ditas medidas.

As populações aceitam medidas duras, drásticas e desconfortáveis por um período limitado de tempo, se com isso sentirem que o problema se resolve. Não porque sejam sádicos e adorem ser punidos, mas por terem noção da gravidade do problema e, sobretudo, por quererem recuperar a sua vida, a sua alegria, os hábitos que trazem felicidade e, sim, a sua LIBERDADE, rapidamente. Por isto os lockdowns iniciais em Portugal foram bem sucedidos. Por isto os lockdowns na China e na Nova Zelândia não tiveram contestação. Por isto em Taiwan as máscaras se generalizaram de imediato e o isolamento da ilha foi tão respeitado.

Na segunda vaga, em Portugal, o caos de decisão imperou. O governo decidiu seguir o modelo sueco quando o modelo sueco já se sabia ter corrido mal. Todas as decisões foram tomadas para poupar as contas públicas: não se gastou dinheiro com os equipamentos digitais para os alunos carenciados (e, por isso, as escolas não podem fechar), não se encerraram atividades económicas porque o governo não queria pagar as compensações pela suspensão da atividade,… Enquanto outros países europeus confinavam por pequenos períodos, em Portugal os transportes públicos continuavam cheios de gente, durante a semana fazíamos vida normal (que o governo queria recolher os impostos dessa atividade económica) e tiravam-nos os fins de semana, os tempos de lazer, atividades seguras como eventos culturais. Traduzindo, trataram-nos como serviçais com obrigação de gerar impostos durante a semana, ao mesmo tempo que nos tiravam os tempos para o lazer, para alegria e para a felicidade ao fim de semana. Os resultados, claro, foram praticamente nenhuns, continuámos com vários milhares de contagiados a cada dia e com números crescentes de mortos por covid.

Depois disso, depois de estrangularem a felicidade e o bem estar psicológico e emocional das pessoas com o recolher obrigatório dos fins de semana – sem resultados proporcionais de redução de contágios e mortes covid – abandalham completamente as regras para o Natal, dando um sinal mortal (literalmente) de que não existia perigo, as pessoas podiam continuar a celebrar o Natal normalmente. Como é evidente, depois dos constrangimentos (desproporcionais face aos resultados) na nossa vida, muita gente aproveitou o escape dado no Natal. Não porque são irresponsáveis, mas porque são humanos e precisavam deste contacto depois de meses ou fechados em casa ou a trabalhar. Era previsível para todos os que conhecem a natureza humana.

Depois disto tudo, o governo decretou – com vagar, que a situação nem é nada dramática – um confinamento com mais buracos que um queijo suiço, onde até os mais idosos têm possibilidade de se irem contagiar nas missas.

E perante um governo que tem a informação toda sobre a situação real da covid – disponibilidade de camas e de profissionais de saúde nos hospitais, previsão do crescimento dos contágios e das mortes nos mais variados cenários, capacidade de testagem, estimativa dos casos assintomáticos (e contagiosos) que não estão a ser diagnosticados e isolados, etc. – mas ainda assim não toma medidas que de facto contenham o contágio e as mortes, culpam-se as populações por estarmos nos píncaros dos números de contágios e mortes por covid por milhão de habitantes.

Não há irresponsabilidade e egoísmo das pessoas? Há, claro. Mas, mais uma vez, deve ser contando com essa irresponsabilidade e egoísmo que o governo deve decidir. Não o fez. Demitiu-se da sua obrigação de conter a pandemia. Não contem comigo para, depois de meses a criticar a criminosa gestão de Trump, dar palmadinhas nas costas ao governo português que nos proporcionou estes números negros de covid.

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