Precisa-se: um juiz homem que goste de violadores

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Um advogado argumenta em tribunal, num caso de rapto e casamento forçado, que o testemunho de uma mulher não deve valer porque as mulheres ‘são seres – umas mais que outras – muito voláteis. O que hoje é verdade, poderá ser mentira amanhã. Alguém ter a pretensão de interpretar a vontade presumida [da vítima] aquando dos factos é temerário.

Outro advogado pede substituição da desembargadora Adelina Barradas de Oliveira num caso de violação de uma rapariga pelo pai porque a juíza, sendo mulher e mãe, seria parcial.

Bom, vários pontos.

1. A existência repetida deste género de argumentos, bem como as considerações negativas que juízes (com Neto de Moura à cabeça) fazem sobre as mulheres nos seus acórdãos, levam a que questionemos se não é generalizada a crença, mais ou menos explícita, mais ou menos assumida, de que a palavra dos homens, em tribunal, vale mais do que a das mulheres.

2. O argumento da parcialidade da juíza é todo ele um programa.

Por um lado porque se assume que as mulheres são parciais, mas os homens não. Não se diz que os homens são também eles parciais, porventura de uma forma diferente que a das mulheres – não, os homens são seres humanos omniscientes que conseguem decidir desapaixonadamente; já as mulheres são pessoas desviadas que não têm as boas qualidades das pessoas normais (os homens) e decidem mal. É por às claras que os homens – com as suas parcialidades, inclinações, preconceitos, limitações, etc. – são a norma, e que as mulheres são desvios à norma a serem tolerados apenas q.b.

Não há cá igualdade na diferença, não: uns são a norma, outras são a esquisitice. Não nos enganemos: há muita gente, homens e mulheres, que pensa assim. Que o mundo construído pelos homens a pensar nos homens e nas suas características é o mundo perfeito, e que as mulheres é que têm de se adaptar a um mundo que não foi construído para elas – em vez de se mudarem as regras para acomodarem todas as formas e pontos de vista.

3. Por outro lado, o que aqui se mostra é a tentativa de manter a defesa dos interesses masculinos acima de tudo – da igualdade de direitos e de oportunidades, da integridade dos processos penais, da justiça. O advogado queria um juiz que fosse mais capaz de empatizar com o homem violador.

Quando nos querem excluir (com qualquer argumento) do acesso a qualquer profissão, devemos ter em atenção que a maior motivação é esta: a manutenção da defesa dos interesses masculinos, em vez de uma situação inclusiva que tenha em conta os pontos de vista de toda a gente. Quando digo que fazem falta mulheres nos cargos políticos para defender soluções para os problemas específicos das mulheres, salta sempre um grunho dizendo que também fazem falta, então, homens para defenderem os interesses e respostas para os problemas dos homens. Não sei se é falta de inteligência se má fé que os faz não entender que a maioria masculina na política fez exatamente isso ao longo de milénios: defender os interesses masculinos, à custa do sexo feminino sempre que foi necessário.

4. O estratagema deste advogado foi tão evidente, e num caso tão grave, que deu cabo do argumento que os homens decidem com imparcialidade. O advogado pretendia um homem parcial com a vontade de alguns homens violarem mulheres – algo que é muito abundante, é ver a quantidade de homens que desculpa os agressores e culpa as vítimas sempre que se sabe de um caso de violência sexual, ou que faz por relegar este assunto para as minudências que não merecem atenção. Não acredito que a maioria dos juízes homens seja benevolente com a violência sexual, mas é inegável que muitos são (como muitas juízas).

5. A ameaça de violência sexual (que inclui a não punição pela comunidade, ou processos judiciais extenuantes que só podem pretender desincentivar mulheres de os prosseguirem) é sem dúvida um reduto dos interesses masculinos (não de todos os homens, claro, mas de muitos) – porque nos tolhe a liberdade sexual, a liberdade de movimentos, o direito a decidirmos o que se passa no nosso corpo. E tudo isto dá vantagens aos homens – profissionalmente, nas relações, em todo o lado.

6. Pelo que nunca esqueçamos que dificultar o acesso de mulheres aos lugares de poder político é manter esta espada da violência sexual sobre a cabeça das mulheres. Os homens políticos não são seres superiores que legislam benignamente sem atender aos interesses do seu próprio sexo.

Vêm aí eleições, lembremo-nos disso e exijamos respeito e inclusão.

2 COMENTÁRIOS

  1. Sou homem mas concordo inteiramente com o artigo. Defendo a igualdade entre géneros (hoje muito pouco em voga desde que Trump, Bolsonaro etc dominam do seu poleiro a comunicação “social”) e rejeito liminarmente a violação e os abusos de poder.

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