O dinheiro que nos devem

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Imagem de Isabel Santiago

Era, quase sempre, cedo. Ia, embrulhada numa manta que me protegia do frio, os 5 km que distavam de minha casa à casa da minha avó. Passava dos braços da minha mãe para os da minha avó, como quem passa de um monte de algodão doce para uma nuvem. Estava entregue. Fiquei 18 anos aos cuidados da minha avó. A melhor forma, para mim, de crescer. A minha avó, com este ninho de nuvem, libertou os meus pais para irem trabalhar. E, garanto, não há descanso maior para uma mãe que saber os seus filhos entregues à avó.

Lembro-me de ser pequenina e perguntar à minha avó se nunca ia trabalhar. Que confusão que aquilo me fazia! Iam todos trabalhar, um trabalho remunerado, e a minha avó ficava em casa comigo. Tinha todos os cuidados de que uma criança precisa, com o bónus do amor. Nunca aceitou um tostão. E ainda gastava para dar esses cuidados. O meu avô, esse, ia trabalhar para sustentar a casa. Trabalhava dia e noite. Era ele que estava responsável por levar o dinheiro para casa. E também me fazia confusão. Cresci, fiz-me mulher naquela casa, naquele quintal, nos braços dos meus avós.

A minha avó fazia – e faz – tudo por amor. Não por dinheiro. Não aprendeu a pedir dinheiro. Aprendeu a cuidar. E hoje, quando vou a casa da avó com as minhas filhas, todos os cuidados que tinha comigo, tem com elas. Foi bom crescer assim. Envolvida no afeto e no amor incondicional.      

Outros tempos, outras vontades. Na minha geração crescíamos todos – ou pelo menos a maioria – assim: com os avós. Deve ser por isso que me lembro do amor cada vez que cheiro a sopa feita pela minha avó!

Nunca ninguém contabilizou o número de horas que dedicou – e ainda dedica – à família e aos cuidados. É trabalho gratuito. O amor chega. Chegará? Ninguém conta os dias que uma mulher dedica à casa e à família. Poucas casas existem onde o homem se ocupa das tarefas domésticas. Estão cansadíssimos, ninguém lhes pede que ainda façam mais. É trabalho voluntário. Fazemo-lo porque temos amor à família, vamos ouvindo dizer por aí. Cansa. Cansa mais que o trabalho remunerado. E só depois de ser mãe é que valorizo este tipo de trabalho, ainda que tenha a meu lado um homem decente que partilha comigo todas as tarefas relacionadas com a casa e com as filhas. E não me venham dizer que os homens estão mais cansados que as mulheres, porque as suas profissões são mais pesadas, e que precisam de mais descanso. Não é assim. O que se passa é que não querem saber. É tão mais confortável chegar a casa e ir para o sofá. Não estar preocupado com tarefas domésticas, com os banhos dos filhos, com o jantar! Sinal dos tempos é que cada vez há mais homens que não abdicam destes cuidados aos filhos. Contudo ainda são poucos. Muito poucos.

Com a abertura do espaço profissional a mulheres, este cenário, espero eu, tem tendência a mudar. Mas é um longo caminho que ainda temos de percorrer, existem várias resistências. Penso mesmo que estas resistências se devem ao facto de a economia monetária depender da economia não monetária, ou seja da economia dos cuidados.

Homens e mulheres. Aos homens o espaço produtivo e o social. Às mulheres o espaço doméstico. As tais mulheres recatadas, as fadas do lar, capazes de costurar umas calças e ter o jantar pronto às 20 horas da noite. Sempre houve esta divisão sexual do trabalho: atividade produtiva (produção de mercadorias e bens de consumo) – homens; atividade reprodutiva (relativa ao cuidado com as pessoas) – mulheres. Este último nunca foi reconhecido, nem remunerado.

A economia feminista é isto: a preocupação com a posição das mulheres no mercado de trabalho. Esta divisão sexual do trabalho sempre foi a base da opressão contra as mulheres. Não somos capazes de nos livrar da opressão do patriarcado senão começarmos a desconstruir tudo isto. O modelo económico adotado sempre foi desfavorável às mulheres. Foi construído tendo como base o pensamento patriarcal. Se queremos debater as desigualdades entre homens e mulheres, devemos começar por aqui, na minha opinião.

Todas nós temos – ou pelo menos a maioria tem – alguém que cuidou de outro alguém gratuitamente. O conceito de trabalho está associado a produção. E o que produz alguém que só cuida?  A economia feminista questiona esta dimensão básica de género. A sociedade – e os meios de produção – devem muito dinheiro às mulheres, que durante séculos estiveram dedicadas ao cuidado. E agora? Como vamos cobrar todo o dinheiro que nos devem? A nós, mulheres? Às nossas mães? Às nossas avós?

Eu sei de uma maneira: invadindo o espaço produtivo. Exigindo condições de trabalho. Impondo a nossa presença. Qual flor que nasce no meio das silvas!

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